Quando uma Crítica Encontra a Outra...
Ivânia Nunes Machado
Rocha
(Mestre em Crítica
Cultural/UNEB, Doutoranda em Teoria da Literatura/UFSE)
Então,
no final de 2013 — início de 2014, eu era uma mulher madura, aos 40 anos de
idade: casada, com 2 filhos adolescentes passando por uma fase extremamente
difícil; trabalhando 40 horas semanais em uma escola pública da educação
básica; e morando nos confins do interior da Bahia — numa terra esquecida por
Deus.
Já
tinha cursado a Licenciatura em Pedagogia e feito uma especialização em Gestão
Educacional; em seguida, cursei também de modo presencial uma Licenciatura em
Letras com habilitação em língua Portuguesa e Literaturas. Logo após o Curso de
Letras, engatei uma pós-graduação em Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa
e Literaturas. Não havia mais nada que eu pudesse cursar além disso num raio de
400 km.
A
rotina casa — trabalho — filhos — marido, regada a inúmeros problemas e
dificuldades, estava me esgotando. Meus filhos estavam estudando fora e ambos
estavam passando por um período de depressão grave. Eu e meu companheiro vivíamos
na estrada, enfrentando uma rotina escorchante, onde revezávamos para passar os
finais de semana com nossos filhos: numa semana, um de nós viajava para
Salvador na quinta-feira e retornava no domingo para Irecê e na outra semana
era o outro. Enquanto estávamos no interior, trabalhávamos com afinco, na
tentativa de suprir as nossas ausências. Quando íamos para a capital, nos
desdobrávamos para acolher as demandas de nossos filhos (que não eram poucas).
Muitas
vezes, tivemos que envolver nossos pais idosos na equação, numa tentativa de
amenizar o sofrimento das crias... Enfim, eu já não sabia mais o que fazer, já
que não poderia me dividir em duas. Em meio ao caos que se tornara a minha
vida, a vontade de estudar, de aprender e de ampliar os horizontes, em vez de
arrefecer, ela cresceu — a ideia ficava piscando para mim, toda sedutora — apontando um caminho alternativo para me afastar um pouco dos problemas e olhar
para eles em perspectiva.
Eis que
surge a seleção do mestrado em Juazeiro. Falei a meu esposo que ia tentar para
ver como era o processo, a fim de conhecer e ganhar experiência para tentar
para valer depois em algum programa de Salvador, onde meu coração estava, junto
com meus filhos. Escrevi o anteprojeto em um tempo recorde e cuidei de ir xerocopiar
para poder colocar no correio. Quando estava na copiadora, encontrei com uma
colega da faculdade de Letras que estava enviando o projeto dela para a seleção
do Pós Crítica. Ela me perguntou se eu estaria participando dessa seleção
também.
Até
então, eu nem sequer tinha ouvido falar do Programa de Pós-Graduação em Crítica
Cultural. A minha colega disse que era uma pena eu não participar da seleção,
porque o programa era a minha cara – ela acreditava que não daria mais tempo de
eu me organizar, já que as inscrições se encerrariam no outro dia. Tomei aquilo
como um desafio: era quinta-feira meio dia, eu trabalharia a tarde inteira
desse dia e sexta-feira, até as 17:00, eu teria que enviar, pelos correios, o
anteprojeto para a seleção do Mestrado em Crítica Cultural.
Não
almocei nesse dia... Tratei de revirar a internet, atrás de informações sobre o
Pós-Crítica, sobre as linhas de pesquisa, sobre os docentes. Dissequei o
edital. Descobri que uma das linhas era bastante parecida com a que eu estava
concorrendo em Juazeiro. Fiquei empolgada e fiz os meus dedos voarem sobre o
teclado do computador, fazendo as alterações necessárias para adaptar o
projeto. Depois de muita peleja, esbarrei nas laudas. Em Juazeiro, poderia ser
até 12 laudas. Em Alagoinhas, o máximo eram 10 laudas. E eu nunca soube
atalhar... No afã de realizar as adequações, em vez de 10, eu tinha mais de 12
laudas.
Essa
quinta-feira se transformou em sexta-feira, sem que eu sequer pregasse os
olhos. Em algum momento da madrugada, me obriguei a deitar, mas a mente
continuou fervilhando. Retomei a labuta na sexta, antes mesmo do nascer do sol.
Até a hora do almoço, fechei nas famigeradas 10 laudas (era o início da fase
econômica de escrita – eu viria a descobrir que a academia não aprecia robustez
de detalhes).
Meu
projeto foi aprovado. Fui passando em cada uma das fases. Fui aprovada também
na outra seleção. Abandonei o processo seletivo de Juazeiro. Meu coração já
tinha outro dono — o PPG em Crítica Cultural. Passei todo o primeiro ano do
mestrado na estrada, entre Irecê — Alagoinhas — Salvador. Lecionava, lecionava,
lecionava; viajava, viajava, viajava; cuidava, cuidava, cuidava (dos outros); estudava,
estudava, estudava; lia, relia, lia e relia: Giorgio Agamben, Guacira Louro, Silviano
Santiago, Judith Butler, Spivak, bel hooks, Angela Davis, James Clifford (no
original em inglês).
Li
todos e cada um dos textos de todas as disciplinas. Não perdi aulas. Mas também
nunca desliguei o celular – tinha filhos em situação de risco. Tive que
interromper momentos de orientação porque um dos filhos estava em crise e eu
tinha que voltar correndo para contenção de danos. Emagreci. Meu cabelo caiu.
Minha pressão arterial foi parar nas alturas. Tive crises recorrentes de
enxaqueca. Tive apagões de memória.
Viajei.
Conheci pessoas. Fiz amizades para o resto da vida. Participei de eventos.
Publiquei textos. Aprendi a trabalhar com revisão e edição de textos. Fui a
motorista de muita gente, entre colegas e professores. Me apaixonei
profundamente pelo curso e pelas pessoas que estavam à sua frente, na época.
Ainda tive tempo para um vinho e uma comidinha com os pós-críticos nas quintas
pedagorógicas.
Olhando
em retrospectiva, posso afirmar, com segurança, que esse processo duro de
estudos, com uma rotina enlouquecedora pelo volume de leituras que tinha que
fazer e pela quantidade considerável de atividades a desenvolver, foi o que me
salvou de enlouquecer. Os momentos roubados de prosa com os colegas do curso,
as reuniões com o grupo de pesquisa, o envolvimento com a revista do programa,
a Grau Zero (sim, eu arranjei espaço
para essa paixão também), ajudaram a me manter sã.
O
professor Osmar, na época coordenador do Pós-Crítica, foi muito receptivo. A
Professora Jailma, minha orientadora, foi muito tudo em minha vida acadêmica e,
por conseguinte, na esfera pessoal também: foi amiga, foi paciente, foi
compreensiva e foi dura, quando necessário. Ela iluminou meus olhos para uma
infinidade de novas coisas e também abriu seu coração para receber o que eu
tinha para oferecer. Foram trocas proveitosas e significativas.
Tirei
notas ruins. Algumas boas. Escrevi muito. Reescrevi ainda mais. Produzi uma
dissertação de 166 páginas. Os membros da minha banca são dois queridos, que me
ajudaram muitíssimo: Professora Maria Helena Besnosik (UEFS) e Professor Carlos
Magno Gomes, avaliador interno naquela época; hoje meu orientador no doutorado
da Universidade Federal de Sergipe.
Pois é,
o PPG em Crítica Cultural me fez crescer em todos os sentidos, inclusive no
salário, algum tempo após a conclusão. Fui para o doutorado bastante preparada.
Fui aprovada em 1º lugar em Literatura e em 2º lugar geral, já que um
concorrente de Linguística fez uma pontuação maior que eu. Nunca tirei menos
que A em todas as disciplinas e integralizei meus créditos logo no primeiro ano
(2018).
Com a
vida pessoal mais equilibrada e de licença do trabalho desde o início do
doutoramento (ganhei na justiça), estou terminando de ministrar um curso de
extensão aqui em Irecê, para mulheres sertanejas, no qual estão sendo
realizadas leituras e discussões de obras de escritoras negras e/ou nordestinas
e têm sido muito gratificantes — um presente. Estou trabalhando em leituras
complementares e na escrita da tese, na preparação para qualificar até o final
desse ano, até início de 2020. Possivelmente, concluirei o doutorado em 3 anos,
em vez de 4, já que estou bastante adiantada. E feliz. O Pós-Crítica fez uma
enorme diferença em minha vida.
Quero,
em um futuro não muito distante, se o atual cenário político permitir, ingressar
como professora da UNEB. Sou devedora dessa Instituição. Tenho muito o que
retribuir, pois foi nessa universidade multicampi que cursei duas graduações,
uma pós-graduação latu sensu e o
mestrado em Crítica Cultural. Este último alargou meus horizontes de
expectativa, quebrando barreiras de preconceitos os quais eu nem sabia que
possuía e possibilitando o meu reconhecimento enquanto mulher trabalhadora,
enquanto educadora, enquanto sertaneja, parda e oriunda de classes subalternas.
Aprendi,
com o Pós-Crítica que, além de uma mãe que ama e luta por seus filhos e alunos,
eu posso ser uma mulher que luta com e por outras mulheres; que posso ser uma
mensageira para outras mães; que posso ser exemplo para meus filhos e meus
alunos; que posso ser mais interessante para meu marido, porque vivo cheia de
assunto e de novidades (ele se orgulha muito da pessoa que me tornei).
Amo
muito o Pós-Crítica e é um prazer e uma honra fazer parte da história dos seus
10 anos. Ficou um pouco de cada pós-crítico em mim, daqueles que passaram pela
minha vida. Abraços afetuosos a todos. Amo vocês.
Seidel,
eu escrevo demais. Mas você sabe disso, pois trabalhamos lado a lado na Fábrica de Letras — aprendi muito com
você. Aprendi com Ari, Com Wô, Com Félix, com Paulo. Foi muito bom estar com
vocês. Até breve.
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