Pós-Crítica/UNEB: 10 Anos, uma Carta de Amor que eu te Conto e Outros Pontos
Profa. Dra. Maria
Anória de Jesus Oliveira
(Docente do Programa de
Pós-Graduação em Crítica Cultural/UNEB)
Encaro a tela em branco do computador. Vasculho a memória e
busco preencher esse espaço com pontinhos pretos, os quais inundarão as páginas
de um livro em construção: O Pós-Crítica, uma década de existência, desafios e
conquistas. Mas, o que dizer? Por onde
começar? O que priorizar nessas travessias? Faço o recorte de uma história que
não cessa: o antes, o agora, o porvir...
Como sou das águas e travo lutas contínuas para não me
deixar “embrutecer por dentro” diante das exigências acadêmicas, tento seguir o
caminhar da protagonista negra Geni, diante do seu jeito de ser/estar e
expressar a vida com “os olhos de
dentro” (A cor da ternura, de Geni
Guimarães). Na sintonia, uma pergunta emprestada de Clarice Lispector em seu
livro Água viva: o que estou fazendo ao te escrever? Estou
tentando fotografar o perfume...
O perfume, então...
Era um dos dias de greve na UNEB, há mais de uma década
atrás, na região do campus I. Lá estávamos no almoço com outros colegas
grevistas e ele, Osmar Moreira, um entusiasta docente do campus II, expressava seus
propósitos: investir em um programa de pós-graduação que abarcasse as
linguagens das margens. O carismático professor falava, falava, ouvia, falava,
falava, estimulava. Em meio à prosa, uma pergunta:
“— Quais textos os jovens do ensino médio do recôncavo
baiano tinham acesso?” Revisitando vivências da Educação Básica em São
Sebastião do Passé (depois em Salvador), lembrei-me: Gibis, Sabrinas, Biancas, Fotonovelas...
Respondi.
Eureka! Ele tocava
em algo que fazia sentido! Concluí, então, no ensino Fundamental éramos ávidos leitores!
Consultávamos as velhas enciclopédias expostas nas estantes de nossas casas,
onde eram exibidas às visitas antes e após termos televisão. Eram as
ferramentas de estudo para a realização de trabalhos escolares.
Também, uma verdadeira febre: Gibis, Sabrinas, Biancas e Fotonovelas
das mais variadas. Comprávamos, colecionávamos, emprestávamos e líamos com
veracidade (Tio Patinhas, Pato Donald, Mônica, Os irmãos Metralhas, Chico
Bento...). Ou seja, assim nos constituíamos enquanto leitores, cujos textos
eram acessíveis nas bancas de revistas ou em pequenas livrarias situadas no
interior da Bahia e, inclusive, na metrópole baiana.
Mas, onde se estudava tais textos e outros não restritos ao
cânone acadêmico? Afinal, tratava-se de linguagens das margens a seduzir a
juventude pobre (e preta, a maioria) que não tinha acesso à literatura clássica.
Na ocasião compartilhei o que sofri na vida acadêmica quando
da graduação e da especialização em uma universidade paulista, na qual me
formei nos anos 90, ao empreender estudos sobre personagens negros na
literatura. E a resposta enfática de uma docente que foi consenso das demais: Isso não é literatura! Questões sociais,
raciais, ideológicas... A literatura, argumentava/m, está para além dessas questões! Uma voz solitária, a minha, na
época, foi ao campo de batalha: a “arena do saber/poder”, defendeu a causa em
combate, obteve a aprovação, mas, também, o trauma da exposição.
Jamais esqueci
aquela interdição. Traumatizei por certo tempo. Depois,
destravei. Fui de encontro à ordem
do discurso instituído academicamente e dediquei-me às sucessivas
pesquisas. A interdição de outrora me
mobilizou à imersão no campo de estudos das relações étnico-raciais,
respectivas literaturas e outras incursões d’Áfricas nessa negra diáspora.
Como, então, não escrever essa carta de amor ao Pós-Crítica e ao que esse
programa representa em minha trajetória? Quantos/as de nós não passamos por
semelhantes situações? Deixo-te essa provocação.
A breve digressão acima é, apenas, para explicitar o porquê
do encantamento com o Pós-Crítica, onde encontrei parceiros/as que, em seus
respectivos projetos de estudos, voltam-se às linguagens das margens e não só aos
textos canônicos que, na realidade, fizeram/fazem parte de meu repertório de
leitura e paixão (mas, um capítulo de outras histórias que não vem ao caso
agora).
Entrelaçando os fios do pensar... Osmar, o atual coordenador
do Programa disse, na época, estar elaborando uma proposta de mestrado que
abrangeria as linguagens das margens. A proposta era inovadora e original.
Faria a diferença na UNEB e em outros programas, explicava. Amei! Concordei e
notei a relevância das ideias em formulação. Sonhei vê-las efetivadas.
Encantado com o projeto, o citado professor problematizava a
noção de leitura/literatura e a marginalização, nas universidades, dessas
linguagens e outros letramentos das diferenças (os quais, aqui, considero
linguagens das margens). Depois, saímos da greve e voltamos às lidas diárias em
distintos departamentos.
O tempo seguiu seu curso...
Já afastada, morando fora por conta do doutorado, avistei, entre
os e-mails, o esboço do projeto de mestrado em fase de elaboração pelo citado
professor (e outros/as docentes, se não me falha a memória). Já não era mais um
sonho! O Pós-Crítica, desde então, um projeto de vida em estruturação. Daquelas
travessias o porvir.
Em 2011, com o programa em curso, tive a alegria de ser convidada
a compor a equipe. Antes, porém, a análise de currículo etc. … De lá para cá
minha vida girou. E, tenho certeza: a de muita diferente gente que dele fez/faz
parte.
O Pós-Crítica, pelo exposto e muito mais, move e mobiliza a seguir em frente como versificou Mario
Quintana: O adolescente:
A vida é tão bela
que chega a dar medo.
Não o medo que
paralisa e gela,
estátua súbita,
mas
esse medo fascinante
e fremente de curiosidade que faz
o jovem felino
seguir para frente farejando o vento
ao sair, a primeira
vez, da gruta.
[...]
Adolescente, olha!
A vida é nova...
A vida é nova e
anda nua
— vestida apenas
com o teu desejo!
Assim noto o programa em algumas investidas arrojadas e
desafiantes, pois, já senti, nas travessias “esse
medo fascinante e fremente de curiosidade que faz/o jovem felino seguir para
frente farejando o vento/ao sair, a primeira vez, da gruta”.
O Programa é jovem,
avança à “adolescência”, portanto. E, de certa forma, ao sair da “gruta” (da
ideia, do papel, das meras burocracias) redimensiona a arte de pensar/pesquisar
e viver a academia. Transformamo-nos! (Um dos resultados, vale conferir: https://portal.uneb.br/poscritica/).
No Pós-Crítica/UNEB, novos e constantes desafios: literatura
e culturas, modos de produção; letramentos, identidades, formação de
educadores/as para as relações étnico-raciais... A literatura e demais artes,
sabemos, não estão alheias às injunções do tempo. Seguimos à direção do
pensamento da escritora nigeriana Chimamanda Adichie (2008): muitas histórias importam!
Viabilizam-se e visibilizam-se, nas pesquisas, distintas histórias
e seus protagonistas. Ou seja, das margens emergem vozes das diferenças através
de estudos empreendidos por mestrandos/as da região, adjacência e outros
estados.
O Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural (Pós-Crítica/UNEB)
é repleto de desafios, é bom destacar! Vai um, vem outro e mais, outros mais,
em um mar sem fim de marés altas. Baixas, a simbolizar calmarias? Desconheço.
Talvez daí o grande apreço pelo programa apesar de, também, desejar a calmaria
dos rios para desanuviar o pensar. Um dia, quiçá! Um dia... Até lá, vida que
segue.
O céu é o limite, pois ele, o coordenador (que não é “deste
mundo”, ressalto), agregou uma plêiade de estudiosos/as (desse mundo? Talvez
não...) nos 10 anos de existência e potências do Programa agora, a alçar novos voos:
a internacionalização e a mais recente conquista: o DOUTORADO!
Seguimos, assim, na contramão da história de retrocessos sem
precedentes e acintosas perseguições às universidades públicas no país. Nesse
pacote, a ameaça de mordaça e o cerceamento à liberdade de expressão. A
despeito de tais entraves: resistimos e nos fortalecemos.
Vale ressaltar: o Pós-Crítica é uma semente plantada em solo
fértil nas terras da “lagoa pequena”: Alagoinhas. Para germiná-la muita
dedicação, suor e sonhos em noites de pouco sono madrugada afora, finais de
semana, férias e feriados...
E os sonhos não cessam! O Pós-Crítica rompe barreiras e vai
além: BRICS (Rússia, Índia, China e a África do Sul), unindo continentes. Da
América do Sul ao Norte... Antes, porém, os diversos estados do país e
respectivas instituições.
Para não concluir...
Enfim, deixei-me derramar através de pontinhos pretos nesse
espaço em branco para expressar a alegria de fazer parte dessa gente que faz
acontecer, a despeito do delicado contexto brasileiro a afetar nossa saúde
física e psíquica. Por isso mesmo: Pós-Crítica neles/as!
Gratidão àqueles/as que, antes, com a gente caminhou, mas teve
que seguir outras veredas. Viva a UNEB, a “menina dos olhos meus” e o
Pós-Crítica, um bonito pedaço do meu viver e reexistir “desafiando o vento”. E,
olhe, não citei aqui as dissertações defendidas por orientandos/as, as relações
efetivas e afetos, os grupos de pesquisas, companheiros/as docentes...
Diante da exposição que se alongou por demais, chamo à roda
desse diálogo em água a importante frase do inesquecível (ex-)presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, hoje preso político: A
educação não se faz com armas, mas com livros. Sábias palavras de um
nordestino que fez/faz a diferença e mais investiu nas universidades que, hoje,
tentam destruir.
Em nosso caso, querido Lula, diria, a re/educação resulta
de dissertações e, em breve, teses, a fortalecer nossas frentes de luta na
arena do saber/poder, a academia, onde conquistamos o direito de, juntos, tecer
o porvir a começar pelo agora: Olha! A vida é nova.../A vida é nova e anda
nua/— vestida apenas com o teu desejo! Pós-Crítica/UNEB!
Agora, enfim, de fato... Pra não dizer que não falei das flores:
... Caminhando e cantando e seguindo a canção...
...Vem, vamos
embora, que esperar não é saber,
Quem sabe faz a
hora, não espera acontecer
(Geraldo Vandré).
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