domingo, 18 de agosto de 2019

A Mulher Que Criticava (crônica)


A Mulher Que Criticava (crônica)

Elisabeth Amorim
(Mestra em Crítica Cultural/UNEB)


Não era uma vez, nem Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve, Cinderela, Gata Borralheira entre outras celebridades que povoam as cabecinhas das crianças que acreditam que nas horas de perigo aparecerá um caçador corajoso e abrirá a barriga de um Lobo Mau e tirará duas pessoas de dentro sem nenhum arranhão. Talvez, as garotinhas mais faceiras ficam à espera de um príncipe desencantado para tirá-las dos caixões de vidros que aprisionam suas infâncias e saiam galopando campina abaixo.

Sinto informá-las, garotas! Mas não se fazem mais príncipes como antigamente... Quando perceberem que os caçadores não andam mais nas florestas à caça de lobos maus, teremos um país mais consciente. Houve uma metamorfose e a transformação foi geral, alcateia urbana passa a conviver com humano desatento. Ninguém mais quer saber de espingarda, afinal o porte de arma foi liberado, mas onde não estão os lobos? Camuflados nos auxílios paletós, escondidos entre os gabinetes podem até passarem despercebidos, isso se não abrirem a boca diante de um microfone. Que pena! Caixões não são de vidros, beijos não ressuscitam e são necessários muito mais de doze badaladas para que a magia desaconteça. Acordem para luta, Cinderelas! Cem anos de solidão ou Ensaio sobre a cegueira?

A Mulher Que Criticava olhava tudo ao seu redor e a imagem da porta de Vinícius de Moraes era uma constante: “Eu sou feita de madeira/ Madeira, matéria morta/ Mas não há coisa no mundo/ Mais viva que uma porta...” Nascera com um parafuso a mais ou a menos, isso era o que ela ouvia, porém, nunca processava. Assim, como a “porta”, A Mulher Que Criticava era dura, matéria humana, resistente e persistente. Nordestina traz na veia uma força estanha que me leva a cantar. Como decidira ser professora ela dava passagem para muitos. Uns passavam por ela devagarinho, com direito às recuperações e aos empurrões básicos dos Conselhos de Classes, outros de supetão mesmo, correndo sem querer olhar para trás. Talvez, para não serem capturados e servirem de cobaias, repetindo ano após ano a mesma série, para “aprenderem a lição”. É fato, se não há mudança de um lado, não tem como esperar resultado diferente. A Mulher Que Criticava não gostava desse tipo de experiência, protestava nos conselhos, reivindicava, não a reprovação, mas a transformação para que a reprovação não precisasse voltar a ser pauta das reuniões. Mas, quem era ela para transformar alguma coisa? Ela era uma simples Mulher Que Criticava.

Como todas as mulheres, ela tinha um sonho, que não envolvia príncipes nem princesas, mas no seu castelo construído a duras penas, era povoado de livros. Ela tinha fome de livros. Ela tinha sede de saber. Ela queria conhecer pessoas que “tinham” parafusos a mais ou menos, iguaizinhos a ela. Não era assim que muitas pessoas identificavam as “mulheres leitoras”, “CDF” ou simplesmente “estudiosas” como se elas fossem estranhas?

“Estranha” ou não, muito cedo A Mulher Que Criticava entrou na lista, não por merecimento, ela não era tão leitora quanto desejava ser, mas lia, engolia... não era bem assim, lia, via, ouvia, mas nem tudo ela engolia. Vomitava quando necessário, e a cada vômito, o ambiente ia se modificando lentamente, quem disse que seria fácil? Sabia que às vezes para ser ouvido é preciso colocar para fora o que está engasgado em prol de uma convivência mais saudável e crítica? Era desse jeito que ela conseguiu se fazer ouvir na escola em que trabalhava. Quando tapavam os ouvidos para não ouvi-la, A Mulher Que Criticava conseguia uma linha de fuga, aliava-se aos alunos, eles fazem mais barulho, e a sala de aula, em um laboratório era transformado. As experiências mais mirabolantes possíveis aconteciam, e não tinha o “Aladim com a sua lâmpada maravilhosa” para realizar os sonhos de conhecer obras de Jorge Amado, Herberto Sales, Dias Gomes... num passe mágico! As táticas inventivas do cotidiano, impreterivelmente, passavam pelos caminhos da leitura.

A leitura para A Mulher Que Criticava era sua paixão, ela começara cedo, desde criança ela passou a ter contato com os livros de contos e poesias. Isso porque o seu pai tinha o hábito de acordar os filhos declamando poesias de Drummond, Bilac e Castro Alves. Seus irmãos detestavam aquela “mania” do pai, mas para A Mulher Que Criticava, aquele período marcara não só a leitura do dia, mas as primeiras impressões das leituras literárias na sua vida. Quem é o autor, pai? Quando ele escreveu esse texto? O que significa tal palavra? (— Pare! Que menina curiosa! Vamos, leia esse livro, a poesia de hoje está aqui!) E cada um com suas manias, não é mesmo?

Inicialmente, A Mulher Que Criticava olhava para aquela “porta” e dizia, a minha “porta” não terá matéria morta, porque a literatura é viva, vibrante, poderosa, rompe os muros e nem adianta construir novos muros, imitando o de Berlim, diante da força dos subalternos... armas? Informação, crítica e ação. Sentia que precisava ir além da pedagogia. Sabia da existência de oprimido, esperança, autonomia... Saber das pedagogias de Paulo Freire só, não mudaria o mundo da Mulher Que Criticava, ela precisava ir além para saber o que fazer com todo o pacote acumulado durante a sua caminhada.

E com esse pensamento que A Mulher Que Criticava saiu batendo nas portas de algumas universidades. Mas de tanto ouvir até de seus alunos sobre a proposta ser “meio louca” de uma tal desmontagem literária como linha de fuga para não ser capturado, que A Mulher Que Criticava chegou a pensar que estava com parafusos soltos mesmo, não iria mais mostrar “suas experiências literárias” a mais ninguém, se não havia quem acreditasse que isso era possível. Nordestina é forte! A Mulher Que Criticava rasga, costura, corta, reconstrói... tece novos fios, desfaz outros desconstruídos. O que é a vida sem passarmos pelas obras de arte? O que é obra de arte sem as pinceladas da vida? Eis A Mulher Que Criticava num Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural!

O sonho de continuar os estudos se concretizando! Sonho de ser Mestra em Crítica Cultural! Êxtase, encantamento, medo, muito medo! Quantas vezes A Mulher que Criticava passara por situações semelhantes? Lembrou de Fabiano de Vidas secas (Graciliano Ramos) que falara ao ser lesado injustamente, e ao reclamar do patrão foi ameaçado de ser demitido.  Mas, com A Mulher que Criticava tudo foi diferente, tão diferente que ela se sentia à vontade que se aventurou a mostrar uma das suas táticas inventivas literárias, foi o fim do seu esconderijo.

Desde então ela agarrou Foucault a assumiu de vez a nova ordem do discurso. Sim, A Mulher que Criticava depois de exibir no seu status “mestra em crítica cultural”, é convidada para eventos, talvez com o intuito de não criticá-los. Organizadores não sabem a extensão do poder de um Crítico Cultural. A Mulher Que Criticava percebia o estado de exceção escancarado e com dentes arreganhados, pronto para engolir quem estiver na frente, sem chance alguma de um caçador tirar alguém com vida, após o processo dolorido e lento da mastigação. A Mulher Que Criticava sorriu daquele seu pensamento, voltou para Crítica, Deleuze, Seidel, Osmar, Jailma, Anória, Ari, Barthes, Guattari, Edil e os nomes iam pipocando em sua mente, juntamente com a frase “Parabéns a vocês!”, os signos iam pi(po)cando de tal modo que A Mulher Que Criticava, ao ouvir o chamado da crítica numa ação comemorativa pelos seus dez anos de existência, pegou a sua própria arma escreveu: — Subalternos também sabem lutar!


10 comentários:

  1. Belíssima Crônica! Parabéns Elisabeth Amorim!

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  2. Excelente texto! Ah se todas princesas pensassem assim, nossa sociedade sem dúvida seria outra! Quero fazer parte dessa equipe, que veem na educação, no estudo bem elaborado, a porta para o sucesso! Podemos chamar nossos esforços pessoais e profissionais de príncipe?
    Parabéns Beth Amorim, te admiro muito, vc me inspira!Quero entrar nessa equipe para defender e contribuir com meus "príncipes e princesas" da educação especial!

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  3. A leitura tem esse maravilhoso poder de transformar, nao te deixar aceitar o inaceitável e modificar a vida daqueles que ousam entrar em seu mundo...
    Obrigada por compartilhar conosco tão belíssima leitura, Elisabeth.

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  4. Excelente texto! Ah se todas princesas pensassem assim, nossa sociedade sem dúvida seria outra! Quero fazer parte dessa equipe, que veem na educação, no estudo bem elaborado, a porta para o sucesso! Podemos chamar nossos esforços pessoais e profissionais de príncipe?
    Parabéns Beth Amorim, te admiro muito, vc me inspira!Quero entrar nessa equipe para defender e contribuir com meus "príncipes e princesas" da educação especial!
    Cláudia Farias

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  5. Minha dileta amiga! Sempre escrevendo com excelência... amei! Sempre um prazer entrar em contato com seus textos!

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  6. Olá amigos! Que bom que tenham gostado. Sou um dos frutos da Crítica Cultural, parabéns a esse programa maravilhoso. Felicidades mil! Beth

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  7. Parabéns, a Elisabeth Amorim, a nossa querida Beth! Nossa porque orgulhamos da trajetória dessa mulher e com certeza, fazemos parte da sua história. Parabéns a Crítica Cultural!

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  8. Muito bom o texto. Lembrei do texto LER DEVIA SER PROIBIDO, no qual aprendemos o quanto a leitura liberta e nos transforma. Parabéns Elisabeth Amorim continue sempre assim com sabedoria e incentivando a cada um de nós a ser mais leitores.

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  9. Incrível o poder de revelar o seu mundo e reflexões através de uma crônica. Parabéns!!!

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