quinta-feira, 29 de agosto de 2019


Quando a Crítica Abre as Comportas da Memória Cultural


Elizabete Costa Suzart
(Mestranda em Crítica Cultural/UNEB)



No decorrer do VI Encontro de Arte e Cultura, ocorrido em Alagoinhas em 2017, fui convidada para levar representantes do Projeto Portal Tupinambá, localizado no Litoral de Entre Rios, região de Massarandupió. Com o intuito de satisfazer à curiosidade de alunos de uma das instituições de ensino na cidade, trouxe representantes do Povo Kariri-Xocó, de Alagoas, e Fulni-ô, de Pernambuco, para atividades artístico-cultuais, através do seu emblema de identidade étnica, mantida no Toré, que é expresso em forma de danças e cantos voltados à ancestralidade desses povos originários. A apresentação foi estendida até o Centro de Cultura de Alagoinhas. Lá se encontrava não somente um evento regional voltado para a arte e cultura, mas um convite ao diálogo intercultural movido pela tentativa de se estabelecer confrontos com os mecanismos que marginalizam e, portanto, excluem os indivíduos do convívio social, promovidos pela cultura hegemônica que hodiernamente convivem nos espaços institucionais.

Deste convite, houve uma extensão que me trouxe de volta à academia, a mesma instituição onde fui graduada em 1994, FFPA/UNEB (Campus II). Após esses quase vinte e cinco anos fora da instituição, fui atraída pela subjetiva decisão de trazer a minha prática de conscientização nas instituições de ensino acerca da existência de povos indígenas, não somente ao nosso redor, mas por todas as regiões do Brasil, clamando por ter vez e voz ativa no que diz respeito às suas questões de reivindicar suas terras e sua forma de resistência aos séculos de expropriação pela colonização e que nos impelem a uma atitude decolonial. Abrindo um dos livros que poderia também ter sido indicado na bibliografia da seleção para Mestrado em Crítica Cultural, Moreira (Folhas venenosas do discurso, 2002, p. 74) cita Michel Foucault (Os intelectuais e o poder. In: Microfísica do poder, p. 71):

O papel do intelectual não é mais o de colocar “um pouco na frente ou um pouco mais de lado” para dizer a muda verdade de todos; é antes a de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do discurso.

Foi exatamente o seu comentário nesse pé-de-página que me instigou e fez garantir de maneira assertiva que dali por diante seriam abertas as comportas a uma crítica que trouxesse à tona as memórias voltadas para a interpelação de cultura no contexto que me encontrava, a indígena. A reflexão foi dilatada e embora ainda não tivesse atingido a cota sugerida de leituras para os desafios de uma seleção a nível de outra universidade que participei fora do Brasil, anos atrás, já concluía que os condensados textos que resumiram a obra A luta desarmada dos subalternos, me fizeram crer que o caminho era uma reta transversal, paradoxalmente traçado e propício a multiplicidades do pensamento que não deixaria de ser munido de muita imaginação, principalmente de fazer da “língua uma máquina de guerra”, rumo ao multiculturalismo e às possibilidades de perceber o bilinguismo ocultado a este povo que desde o silenciamento de se pronunciar em público, na sua língua nativa, não deixaram de experimentá-la na calada da noite, dentro da mata, através dos seus cantos ancestrais imprecando ao Grande Espírito muito mais que proteção, além de resistência a vigília da sua memória ancestral. Desta forma, sigo com projeto em pesquisa que observo o povo a se fazer não somente ator e autor de sua história, mas de tornar a sua língua nativa a razão de ser e viver a cultura Kariri-Xocó, elevando o bilinguismo a um patamar que produz além de cultura, muito orgulho em ver seus cantos traduzidos e proferidos aos ouvidos do mundo. Esta egrégora mobiliza de maneira sinestésica o universo indígena e todos que dele quer se apropriam.


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