O Crítica Cultural não é uma Crítica Cultural
Fagner Costa e Silva
(Graduado em Letras e Filosofia; Mestre em Crítica cultural/UNEB;
Docente
da Faculdade Ages de Tucano)
“A crítica cultural não é
uma crítica ‘cultural’” (JUSTINO, 2015, p. 11). Para quem deseja adentrar nos
estudos pautados pela crítica cultural, a afirmação em destaque é no mínimo frustrante.
Luciano Barbosa Justino (SANTOS, 2015), ao prefaciar o livro Primeiros passos de um crítico cultural,
de Osmar Moreira (2015), explica sobre a composição da área, não se fechando em
nenhum conceito clarividente, utiliza um procedimento metodológico no qual
deixa as definições trabalhadas sempre abertas.
Duas outras pensadoras
corroboram com tal procedimento na tentativa de elucidação do que seria a crítica
cultural: Eneida Maria de Souza (2012), que, embora
elenque em seu texto Crítica cultural em
ritmo latino-americano modos de atuar na área, suas origens e até seus
princípios metodológicos, também não fecha a definição do espaço crítico
cultural. Nelly Richard (2005), reconhecida estudiosa do campo, fala em seu
texto sobre o caráter pluridisciplinar e muticultural da área, e, por sua vez, deixa
os conceitos que poderiam se referir ao universo de estudo da crítica cultural,
também, em aberto.
Quando desembarquei em
2016 como aluno no Mestrado em Critica Cultural em Alagoinhas, uma das minhas
primeiras busca como pesquisador foi tentar compreender melhor o conceito do
campo que batiza o programa. De início, confesso que me senti bastante
frustrado. Por um lado, não conseguia encontrar a essência (quanta inocência)
do conceito no mapeamento das falas dos professores e, por outro lado, muitas
vezes, encontrava, inclusive, uma oposição conceitual na definição da área.
Julgava que a busca em
tentar entender o conceito de crítica cultural era o primeiro passo consistente
para se constituir como mestre da área, estas indefinições do conceito no programa
e uma esquiva generalizada em não se autorrotular me causava muito desconforto.
Queria, como Hegel, encontrar o espírito absoluto da coisa, resumir o que vinha
estudando em um conceito.
A tradição da teoria da
literatura a que estava vinculado, positivista, filológica, por mais que se
pintassem como pós-modernos, exigia o conceito para alicerçar o objeto de
trabalho. E eu, vinculado aos meus mestres de outros centros de estudos, achava
importante ter uma perspectiva crítica cultural para escrever uma dissertação
em um mestrado que leva o nome da área.
Entre buscas e rizomas
não consegui fechar tal conceito, não cheguei ao fim do curso com êxito na
procura de um verbete satisfatório para o campo de estudo. Talvez encontremos
alguns, que poderiam satisfazer minha postura pré-crítica, mas, ao contrário do
que a área dos estudos literários, que tem seu método de trabalho
autoexplicativo em seu nome, nesse cenário, os espinhos são constantes para
descrever sua atuação e, mesmo figuras que dedicam sua vida há muito mais tempo
do que eu a este campo, reconhecem a dificuldade que é manusear este conceito, observemos
o que o professor do programa Roberto Henrique Seidel nos diz:
Não se pode considerar o
conceito de crítica, nem tampouco o de crítica cultural como auto-evidentes,
uma confusão mental prontamente se estabelece [...] Essa confusão pode ser
explicada parcialmente por conta do adicional do adjetivo “cultural”— visto a própria
noção de cultura estar longe de ser consensual (SEIDEL,
2008, p. 1).
Procurei aqui e ali,
observei os protagonistas de muitas definições, passei por muitos teóricos,
anotei apressadamente as tentativas de conceituações dos professores e ficava
cada vez mais confuso.
O
insite para minha busca
encontrei em uma viagem de volta para casa, em algum lugar do trecho entre Alagoinhas
a Euclides da Cunha, esparramado de cansaço na poltrona do ônibus, com fones
nos ouvidos, Raul Seixas (1974), como um sábio profeta me diz: “Tem
gente que passa a vida inteira travando uma inútil luta contra os galhos, sem
saber que é lá no tronco que esta o coringa do baralho”.
Era isso, antes de chegar
aos fins era preciso compreender a engrenagem que movimenta o funcionamento da
área e, se chegarmos a um consenso sobre o campo (ou se formos aos galhos), ele
pode limitar estudos de novos objetos da cultura. A perspectiva de estudo
pautada no campo da crítica cultural se assemelha à ideia de Trotsky sobre
revolução permanente, temos que nos ressignificar constantemente; a crítica
cultural é nutrida pela transdisciplinaridade e a progressão das disciplinas
que compõe seu corpo inevitavelmente contribui para o desenvolvimento de sua
sistemática; portanto, encontra-se sempre em transformação, e cabe a seus
membros acompanhar tais mudanças.
No decorrer no curso, depois
de muitas aulas assistidas, tendo acesso a inúmeros teóricos, misturando as
citações, sintomas de dejavu em
diferentes leituras de diferentes componentes curriculares, se aprofundando em
determinados temas, conhecendo a superfície de outros, se destaca uma impressão
quase constatada: A política no campo teórico-acadêmico no programa em Crítica
cultural da UNEB é encarada de maneira concreta e, assim como nos estudos
culturais, ela mescla-se com a teoria (SOUZA, (2012); trata-se de uma
disciplina de ação, que procura entender como o conhecimento produzindo nas
discussões em sala de aula poderá mudar a realidade fora dela.
De maneira muito
particular, isso foi o que mais mexeu comigo: tentar unir meu trabalho teórico
com uma prática de ação. Parti desta inquietação e tracei como objetivo de
pesquisa a seguinte proposição: “Como meu projeto, genuinamente teórico e
pautado em um texto ficcional, poderia se transformar também um projeto
político e de ação?”.
Encontrando-me no “tronco
da arvore”, segui algumas pistas, como um caçador faz com sua presa (GINZBURG, 1989),
exclui e aceitei muitas hipóteses, tentei superar obstáculos epistemológicos
que surgiram no caminho (BACHELARD, 2005), busquei frestas de sombras nas luzes
do tempo da pesquisa (AGAMBEN, 2009) e através delas
tentei vislumbrar um processo de análise para um objetivo de pesquisa,
que, ao mesmo tempo, possa ter um viés político e estético. Tentei seguir um
caminho que se debruçasse sobre a composição da obra artística, procurei
enxergar as singularidades do autor enquanto produtor do texto, ao tempo em que
analisa as particularidades com o social, com o local em que a obra foi
produzida, com as denúncias que fez ou deixou de fazer, e tentar comparar o
cenário em que o documento/obra foi concebido com os dias em que a pesquisa foi
elaborada.
Acreditava que havia
encontrado um percurso sólido depois que já havia construído meu mapa
metodológico e teórico para a escrita, que, como minha pesquisa pedia, este percurso
era genuinamente teórico, mas a vivência com os membros do Crítica Cultural sempre
me guardava outras surpresas. Fui do céu ao inferno! Mas me pergunto: Qual
estudante de pós-graduação no Brasil não foi? Alguns em menor outros em maiores
intensidades. Descobrir que o sofrimento e a dor faz parte do processo de
produção.
Problemas em minha vida particular
eclodiram em proporções que jamais havia experimentado, tive que me reinventar
como ser humano e descobri uma saída para um labirinto que não sabia que
habitava em mim. Foi esta a segunda chave que me fez emergir no universo da crítica
cultural, experimentar a construção de um trabalho intelectual com minha
matéria passando por um turbilhão de problemas e dilemas, com um sofrimento e
uma crise existencial que jamais sentira antes. Precisei inverter e desconstruir
minha lógica de produção, foi só quando senti o peso do mundo nos meus ombros que
pude, com respaldo, começar a discorrer sobre experiência, autobiografia e
autoficção.
Além dos problemas
particulares, o país também passava por uma crise política, a qual afetou
fortemente todos os envolvidos no programa. O golpe sofrido pela presidenta
Dilma Roussef nos abateu, nos consolávamos mutuamente e tentávamos em nossas
lamúrias encontrar uma saída para aquele desfragmento da democracia brasileira.
Fosse no apartamento que dividia com os colegas Edivanio e Marcelise ou no
campus da UNEB com os professores e os outros membros da turma, um misto de
tristeza e desilusão tomou conta dos mestrandos de 2016; mas apesar de todo
este trauma coletivo, sorríamos, não sei explicar ao certo, mas o riso era uma
das nossas marcas mais fortes.
Sartre diz que o “silêncio
é reacionário”. Comecei, diante de todos os acontecimentos que pairavam no
período, a pensar que seria reacionária qualquer atividade intelectual
produzida no Brasil naquele período que não levasse em conta o cenário político
que o país atravessava. Seja qual tema fosse abordado, tínhamos o dever
histórico de alertar os nossos leitores sobre o risco que corria o estado de
direito e todas as conquistas sociais alcançadas nas últimas décadas. Meu
trabalho, que a priore se privava
destas críticas, mudou de direção. E mesmo discutindo fatos de um passado e de
uma perspectiva teórica, busquei, no período em que as obras que estudava foram
produzidas, uma fresta para compreender o tempo presente.
Foi
inevitável não modificar o olhar sobre o meu objeto de pesquisa, influenciado por
teóricos estudados em sala de aula, nas discussões com os colegas ou nas
retóricas dos professores. Minha perspectiva de trabalho transformou-se,
partindo dos estudos literários para a crítica cultural, não chamaria de uma
migração completa, já que parte significativa do alicerce teórico se encontra
nesta primeira área, não pretendo abandoná-la, refutá-la ou negá-la, talvez
criticá-la em alguns pontos, mas minha intenção é contribuir com sua
ressignificação em algumas proposições e associada à teoria presente na área da
crítica cultural, de fazer uma análise precisa dosando elementos políticos e
teóricos.
Esta
dosagem foi talvez a melhor coisa que aprendi no Crítica Cultural, além da
ideia de busca. O professor Washington me instigou para buscar os “restos” da
cultura; Felix a buscar os fragmentos que a ascensão de certas culturas deixa
para trás; Osmar a buscar viver e não só conceituar política; Jailma a buscar a
alteridade no outro; Neuma a buscar na indignação um sentido para continuar
lutando e pensando; Berenice a buscar na educação um sentido de vida; e Seidel,
a buscar em mim a chave para minhas angústias e para minha liberdade.
Me
transformei em dois anos que me envolvi com o programa. Não digo isso porque
adquiri um título de mestre, mas porque aprendi a ser mais humano e
comprometido com o papel que um intelectual deve ter com o mundo em que vive. A
felicidade e a dor de se iniciar na pesquisa de stricto sensu faz com que não sejamos mais os mesmos;
inevitavelmente ficamos mais conscientes de nós mesmos e é esta consciência nos
dá força e medo.
A
respeito da minha primeira busca, continuo no caminho e acredito que, como
certeza palpável, apenas inverti a dialética de procura. Não adoto mais a
totalidade de uma perspectiva idealista de procura, na qual o fim é o conceito.
Aprendi a trilhar também um viés da matéria, em que o conceito serve para
mudarmos as coisas que estão ao nosso redor. Hoje sei que o Crítica Cultural não
é uma crítica cultural, talvez até saiba o que ela possa significar, só não
posso ousar a conceituar, pois o que a crítica cultural e o Crítica Cultural significam
para mim, vai além de elaborações de linguagens, são partes de mim e sou parte
deles, não me ousaria conceituar para não perder o encanto.
Referências:
AGAMBEN,
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experiência e origem da historia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
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Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
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7-37.
FOUCAULT,
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GINZBURG,
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São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
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Osmar Moreira dos. Primeiros passos de um
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SEIDEL, Roberto H. Crítica cultural, crítica
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de Linguagem, Cultura e Discurso, ano 5, n. 9, jul.-dez. 2008. Disponível
em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4998460.pdf.
SOUZA,
Eneida Maria de. Tempo de pós-crítica:
Ensaios. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2012.
WILLIAMS Raymond. Definindo uma cultura democrática. Trad.
Maria Elisa Cevasco. In: Recursos da
esperança. São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 3-58.
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