domingo, 18 de agosto de 2019

O Crítica Cultural não é uma Crítica Cultural


O Crítica Cultural não é uma Crítica Cultural


Fagner Costa e Silva
(Graduado em Letras e Filosofia; Mestre em Crítica cultural/UNEB;
Docente da Faculdade Ages de Tucano)

“A crítica cultural não é uma crítica ‘cultural’” (JUSTINO, 2015, p. 11). Para quem deseja adentrar nos estudos pautados pela crítica cultural, a afirmação em destaque é no mínimo frustrante. Luciano Barbosa Justino (SANTOS, 2015), ao prefaciar o livro Primeiros passos de um crítico cultural, de Osmar Moreira (2015), explica sobre a composição da área, não se fechando em nenhum conceito clarividente, utiliza um procedimento metodológico no qual deixa as definições trabalhadas sempre abertas.

Duas outras pensadoras corroboram com tal procedimento na tentativa de elucidação do que seria a crítica cultural: Eneida Maria de Souza (2012), que, embora elenque em seu texto Crítica cultural em ritmo latino-americano modos de atuar na área, suas origens e até seus princípios metodológicos, também não fecha a definição do espaço crítico cultural. Nelly Richard (2005), reconhecida estudiosa do campo, fala em seu texto sobre o caráter pluridisciplinar e muticultural da área, e, por sua vez, deixa os conceitos que poderiam se referir ao universo de estudo da crítica cultural, também, em aberto.

Quando desembarquei em 2016 como aluno no Mestrado em Critica Cultural em Alagoinhas, uma das minhas primeiras busca como pesquisador foi tentar compreender melhor o conceito do campo que batiza o programa. De início, confesso que me senti bastante frustrado. Por um lado, não conseguia encontrar a essência (quanta inocência) do conceito no mapeamento das falas dos professores e, por outro lado, muitas vezes, encontrava, inclusive, uma oposição conceitual na definição da área.

Julgava que a busca em tentar entender o conceito de crítica cultural era o primeiro passo consistente para se constituir como mestre da área, estas indefinições do conceito no programa e uma esquiva generalizada em não se autorrotular me causava muito desconforto. Queria, como Hegel, encontrar o espírito absoluto da coisa, resumir o que vinha estudando em um conceito.

A tradição da teoria da literatura a que estava vinculado, positivista, filológica, por mais que se pintassem como pós-modernos, exigia o conceito para alicerçar o objeto de trabalho. E eu, vinculado aos meus mestres de outros centros de estudos, achava importante ter uma perspectiva crítica cultural para escrever uma dissertação em um mestrado que leva o nome da área.

Entre buscas e rizomas não consegui fechar tal conceito, não cheguei ao fim do curso com êxito na procura de um verbete satisfatório para o campo de estudo. Talvez encontremos alguns, que poderiam satisfazer minha postura pré-crítica, mas, ao contrário do que a área dos estudos literários, que tem seu método de trabalho autoexplicativo em seu nome, nesse cenário, os espinhos são constantes para descrever sua atuação e, mesmo figuras que dedicam sua vida há muito mais tempo do que eu a este campo, reconhecem a dificuldade que é manusear este conceito, observemos o que o professor do programa Roberto Henrique Seidel nos diz:

Não se pode considerar o conceito de crítica, nem tampouco o de crítica cultural como auto-evidentes, uma confusão mental prontamente se estabelece [...] Essa confusão pode ser explicada parcialmente por conta do adicional do adjetivo “cultural”— visto a própria noção de cultura estar longe de ser consensual (SEIDEL, 2008, p. 1).

Procurei aqui e ali, observei os protagonistas de muitas definições, passei por muitos teóricos, anotei apressadamente as tentativas de conceituações dos professores e ficava cada vez mais confuso.

O insite para minha busca encontrei em uma viagem de volta para casa, em algum lugar do trecho entre Alagoinhas a Euclides da Cunha, esparramado de cansaço na poltrona do ônibus, com fones nos ouvidos, Raul Seixas (1974), como um sábio profeta me diz: “Tem gente que passa a vida inteira travando uma inútil luta contra os galhos, sem saber que é lá no tronco que esta o coringa do baralho”.

Era isso, antes de chegar aos fins era preciso compreender a engrenagem que movimenta o funcionamento da área e, se chegarmos a um consenso sobre o campo (ou se formos aos galhos), ele pode limitar estudos de novos objetos da cultura. A perspectiva de estudo pautada no campo da crítica cultural se assemelha à ideia de Trotsky sobre revolução permanente, temos que nos ressignificar constantemente; a crítica cultural é nutrida pela transdisciplinaridade e a progressão das disciplinas que compõe seu corpo inevitavelmente contribui para o desenvolvimento de sua sistemática; portanto, encontra-se sempre em transformação, e cabe a seus membros acompanhar tais mudanças. 

No decorrer no curso, depois de muitas aulas assistidas, tendo acesso a inúmeros teóricos, misturando as citações, sintomas de dejavu em diferentes leituras de diferentes componentes curriculares, se aprofundando em determinados temas, conhecendo a superfície de outros, se destaca uma impressão quase constatada: A política no campo teórico-acadêmico no programa em Crítica cultural da UNEB é encarada de maneira concreta e, assim como nos estudos culturais, ela mescla-se com a teoria (SOUZA, (2012); trata-se de uma disciplina de ação, que procura entender como o conhecimento produzindo nas discussões em sala de aula poderá mudar a realidade fora dela.

De maneira muito particular, isso foi o que mais mexeu comigo: tentar unir meu trabalho teórico com uma prática de ação. Parti desta inquietação e tracei como objetivo de pesquisa a seguinte proposição: “Como meu projeto, genuinamente teórico e pautado em um texto ficcional, poderia se transformar também um projeto político e de ação?”.

Encontrando-me no “tronco da arvore”, segui algumas pistas, como um caçador faz com sua presa (GINZBURG, 1989), exclui e aceitei muitas hipóteses, tentei superar obstáculos epistemológicos que surgiram no caminho (BACHELARD, 2005), busquei frestas de sombras nas luzes do tempo da pesquisa (AGAMBEN, 2009) e através delas tentei vislumbrar um processo de análise para um objetivo de pesquisa, que, ao mesmo tempo, possa ter um viés político e estético. Tentei seguir um caminho que se debruçasse sobre a composição da obra artística, procurei enxergar as singularidades do autor enquanto produtor do texto, ao tempo em que analisa as particularidades com o social, com o local em que a obra foi produzida, com as denúncias que fez ou deixou de fazer, e tentar comparar o cenário em que o documento/obra foi concebido com os dias em que a pesquisa foi elaborada.

Acreditava que havia encontrado um percurso sólido depois que já havia construído meu mapa metodológico e teórico para a escrita, que, como minha pesquisa pedia, este percurso era genuinamente teórico, mas a vivência com os membros do Crítica Cultural sempre me guardava outras surpresas. Fui do céu ao inferno! Mas me pergunto: Qual estudante de pós-graduação no Brasil não foi? Alguns em menor outros em maiores intensidades. Descobrir que o sofrimento e a dor faz parte do processo de produção.

Problemas em minha vida particular eclodiram em proporções que jamais havia experimentado, tive que me reinventar como ser humano e descobri uma saída para um labirinto que não sabia que habitava em mim. Foi esta a segunda chave que me fez emergir no universo da crítica cultural, experimentar a construção de um trabalho intelectual com minha matéria passando por um turbilhão de problemas e dilemas, com um sofrimento e uma crise existencial que jamais sentira antes. Precisei inverter e desconstruir minha lógica de produção, foi só quando senti o peso do mundo nos meus ombros que pude, com respaldo, começar a discorrer sobre experiência, autobiografia e autoficção.

Além dos problemas particulares, o país também passava por uma crise política, a qual afetou fortemente todos os envolvidos no programa. O golpe sofrido pela presidenta Dilma Roussef nos abateu, nos consolávamos mutuamente e tentávamos em nossas lamúrias encontrar uma saída para aquele desfragmento da democracia brasileira. Fosse no apartamento que dividia com os colegas Edivanio e Marcelise ou no campus da UNEB com os professores e os outros membros da turma, um misto de tristeza e desilusão tomou conta dos mestrandos de 2016; mas apesar de todo este trauma coletivo, sorríamos, não sei explicar ao certo, mas o riso era uma das nossas marcas mais fortes.

Sartre diz que o “silêncio é reacionário”. Comecei, diante de todos os acontecimentos que pairavam no período, a pensar que seria reacionária qualquer atividade intelectual produzida no Brasil naquele período que não levasse em conta o cenário político que o país atravessava. Seja qual tema fosse abordado, tínhamos o dever histórico de alertar os nossos leitores sobre o risco que corria o estado de direito e todas as conquistas sociais alcançadas nas últimas décadas. Meu trabalho, que a priore se privava destas críticas, mudou de direção. E mesmo discutindo fatos de um passado e de uma perspectiva teórica, busquei, no período em que as obras que estudava foram produzidas, uma fresta para compreender o tempo presente.

Foi inevitável não modificar o olhar sobre o meu objeto de pesquisa, influenciado por teóricos estudados em sala de aula, nas discussões com os colegas ou nas retóricas dos professores. Minha perspectiva de trabalho transformou-se, partindo dos estudos literários para a crítica cultural, não chamaria de uma migração completa, já que parte significativa do alicerce teórico se encontra nesta primeira área, não pretendo abandoná-la, refutá-la ou negá-la, talvez criticá-la em alguns pontos, mas minha intenção é contribuir com sua ressignificação em algumas proposições e associada à teoria presente na área da crítica cultural, de fazer uma análise precisa dosando elementos políticos e teóricos.

Esta dosagem foi talvez a melhor coisa que aprendi no Crítica Cultural, além da ideia de busca. O professor Washington me instigou para buscar os “restos” da cultura; Felix a buscar os fragmentos que a ascensão de certas culturas deixa para trás; Osmar a buscar viver e não só conceituar política; Jailma a buscar a alteridade no outro; Neuma a buscar na indignação um sentido para continuar lutando e pensando; Berenice a buscar na educação um sentido de vida; e Seidel, a buscar em mim a chave para minhas angústias e para minha liberdade.

Me transformei em dois anos que me envolvi com o programa. Não digo isso porque adquiri um título de mestre, mas porque aprendi a ser mais humano e comprometido com o papel que um intelectual deve ter com o mundo em que vive. A felicidade e a dor de se iniciar na pesquisa de stricto sensu faz com que não sejamos mais os mesmos; inevitavelmente ficamos mais conscientes de nós mesmos e é esta consciência nos dá força e medo.

A respeito da minha primeira busca, continuo no caminho e acredito que, como certeza palpável, apenas inverti a dialética de procura. Não adoto mais a totalidade de uma perspectiva idealista de procura, na qual o fim é o conceito. Aprendi a trilhar também um viés da matéria, em que o conceito serve para mudarmos as coisas que estão ao nosso redor. Hoje sei que o Crítica Cultural não é uma crítica cultural, talvez até saiba o que ela possa significar, só não posso ousar a conceituar, pois o que a crítica cultural e o Crítica Cultural significam para mim, vai além de elaborações de linguagens, são partes de mim e sou parte deles, não me ousaria conceituar para não perder o encanto. 

Referências:
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da historia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinicius N. Honesko. Chapecó: Argos, 2009.
AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo. Belo Horizonte. Autêntica, 2013.
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Introdução: Rizoma. In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Ana Lúcia Oliveira. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995, p. 7-37.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
FONSECA, Rubem. José Rubem Fonseca. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
FONSECA, Rubem. O romance morreu: crônicas. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. 1ª reimpr. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
JUSTINO, Luciano. Apresentação. In: SANTOS, Osmar Moreira dos. Primeiros passos de um crítico cultural. Salvador. EDUNEB, 2015.
RICHARD, Nelly. Globalización académica, estudios culturales y crítica latinoamericana. In: Cultura, política y sociedad: Perspectivas latinoamericanas. Daniel Mato. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. 2005, p. 455-470. Acceso al texto completo:  http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/grupos/mato/Richard.rtf.
SANTOS, Osmar Moreira dos. Primeiros passos de um crítico cultural. Salvador. EDUNEB, 2015.
SEIDEL, Roberto H. Crítica cultural, crítica social e debate acadêmico e intelectual. Revista de Linguagem, Cultura e Discurso, ano 5, n. 9, jul.-dez. 2008. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4998460.pdf.
SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de pós-crítica: Ensaios. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2012.
WILLIAMS Raymond. Definindo uma cultura democrática. Trad. Maria Elisa Cevasco. In: Recursos da esperança. São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 3-58.


Nenhum comentário:

Postar um comentário